PRÉVIA (n.t.) 15º

Senhora de todos os me's | Nin-me-šara
En-hedu-Ana (Enheduana)

O texto: Traduzido do texto sumério composto, com base no original em cuneiforme e na historiografia acerca da obra de En-hedu-Ana, de W. Hallo (1968) a A. Zgoll (1997), apresenta-se o poema integral de Nin-me-šara (Senhora de todos os me’s), ao lado do original em cuneiforme. Composto de 153 versos, Nin-me-šara foi venerado por muitos séculos como um texto sagrado da literatura mesopotâmica, escrito durante a época suméria e alcançando a babilônica, quando já era usado nas edubba (escolas de escribas) como um texto clássico a ser reproduzido. Mais de cem tabuinhas cuneiformes com o poema foram encontradas em sítios arqueológicos, sendo um dos poucos textos literários mesopotâmicos a ostentar tantas cópias, o que evidencia sua popularidade à época. O hino ou poema dedicado à “Senhora do Céu”, Inanna, celebra a relação pessoal de En-hedu-Ana com a deusa, sendo o relato verbal mais antigo já encontrado sobre a consciência de um indivíduo acerca de sua vida interior, de seu “eu”. O exórdio do poema ocorre entre os versos 1-65, dirigido a Inanna, evocada através de uma série de epítetos que a comparam a An, o Deus do Céu, pai do panteão mesopotâmico. Já o argumento ocorre nos versos 66-121, quando En-hedu-Ana, em primeira pessoa, manifesta sua insatisfação por ter sido exilada do Templo de Eanna, em Uruk, pelas mãos de um rei sumério rebelde, Lugal-Ane, que o teria profanado. Para isso, pede a intercessão do deus lunar Nanna, pai de Inanna, para ser restituída ao seu posto de en-sacerdotisa. E a peroração se dá nos versos 122-143, quando se recitam os atributos divinos de Inanna, à maneira doxológica. E conforme dita a tradição médio-oriental, as obras literárias são conhecidas a partir de suas primeiras palavras, como, neste caso, Nin-me-šara (Senhora de todos os me´s), poema que também é conhecido, na tradição tradutológica ocidental, como “Exaltação a Inanna”.
Texto traduzido: “Nin-me-šara” (composite text). The Electronic Text Corpus of Sumerian Literature. Oxford: The University of Oxford Library, 1998. Placas em cuneiforme: W. W. Hallo (1968).

A autora: En-hedu-Ana (c. 2285-2250 a.C.), poeta, filósofa e sacerdotisa acádia, é considerada a primeira escritora conhecida da história. Filha do rei acádio Sargão, o Grande, e da rainha suméria Tashlultum, foi a alta sacerdotisa do Templo do Deus da Lua, Nanna, na cidade suméria de Ur. Seu nome em sumério significa: En, o título designado aos sumo-sacerdotes; hedu, termo para “adorno”; e An, que remete ao homônimo Deus do Céu. Lit., “a alta sacerdotisa adornada por An”. A existência de En-hedu-Ana veio à luz em 1928, quando o arqueólogo britânico Sir Leonard Wooley, ao escavar o Cemitério Real de Ur, encontrou primeiramente dois selos do reinado de Sargão em que seu nome aparecia cunhado. Depois, nas ruínas do Giparu, o santuário de Inanna e residência oficial da sacerdotisa, encontrou um disco de alabastro de 2000 a.C. onde constava seu nome e a seguinte inscrição: “En-hedu-Ana, en-sacerdotisa de Ningal, esposa do deus Nanna, filha de Sargão, rei do mundo, no templo da deusa Inanna”. De acordo com a historiografia mesopotâmica, En-hedu-Ana cresceu durante o reinado de seu pai Sargão, marcado pela guerra e uma série de campanhas militares. Enquanto ele lutava em terras estrangeiras, ela, nomeada suma-sacerdotisa por ele, compunha hinos para louvar os deuses acadianos e sumérios. E devido à posição privilegiada que ocupava na esfera mítico-religiosa, talvez tenha feito uso de suas composições nos rituais que realizava, o que explica ter ascendido quase à condição de semidivindade séculos depois, uma vez que passou a ser venerada. Além de seu poema a Inanna, deixou como legado outras obras, incluindo um conjunto de hinos sumérios. E embora parte de sua biografia ainda permaneça incompleta, sua importância tende a crescer na literatura, algo que já se afirma na arqueologia. Até o momento, En-hedu-Ana é a autora mais antiga do mundo, a primeira a escrever em primeira pessoa e também uma figura que evidencia o papel significativo da mulher na história da literatura, além de ser a única do mundo mesopotâmico. E seu nome se preservou através dos milênios por outra inovação que lhe é atribuída: em suas obras, ela colocou seu nome na “capa”, identificando sua autoria, o ponto de partida da história da literatura.

O tradutor: Gleiton Lentz, editor da (n.t.), é pós-doutor em Estudos da Tradução (PGET/UFSC), doutor em Literatura (UFSC/Università di Firenze), tradutor e revisor. Dedica-se ao estudo e tradução da poesia simbolista italiana e hispano-americana e ao estudo da origem das escritas antigas e suas literaturas, incluindo a suméria e a maia. Para a (n.t.) traduziu Cocom Pech e Susy Delgado.



☞ EN-HEDU-ANA (Enheduana). Senhora de todos os me's | Nin-me-šara.
Trad. Gleiton Lentz. (n.t.), n. 15, vol. especial, 2020, pp. 12-27.


© (n.t.) Revista Nota do Tradutor
ISSN 2177-5141